João tentava fazer seu celular voltar a ligar enquanto se aproximava da parada de ônibus. Havia semanas que ele só ligava quando queria. Dessa vez, o aparelho não indicava nenhum retorno como acontecera antes. João já não tinha mais tanta paciência. Pressionava as teclas com um certo furor, menos por esperança de algum sinal do que por raiva.

Andou por mais alguns instantes com sua atenção focada no telefone. Ergueu despretensiosamente seu olhar e percebeu que o ônibus que ele tomaria para voltar à sua casa estava deixando o ponto. Correu como nunca; não o alcançou como sempre. A reação, contudo, foi diferente. Assim que chegou à parada, atirou o aparelho telefônico no ônibus com tamanha força que o fez se despedaçar, provocando um barulho alto o suficiente para chamar a atenção das pessoas circundantes. Por um instante, o motorista freou o veículo, mas, por medo ou indiferença, rapidamente voltou a se movimentar. João gritou de forma enlouquecida, como se tirassem seu filho de seus braços.

- Merda! Que merda!! Cara...

Parou sua fala na metade, contemplando o celular completamente destruído no chão. Poucas pessoas poderiam identificá-lo como um. Olhou-o longamente. Passou a mão em seus cabelos com uma sincera fisionomia de desespero. Andou inquieto por alguns instantes, os olhos fitos nos pedaços ao solo. Absorto como estava, não ouviu o comentário de uma mulher idosa que se encontrava próxima ao ocorrido:

- Tanta gente sem ter o que comer e o idiota atira um celular só por perder um ônibus.

Houve alguns murmúrios de aprovação, afinal o comentário fora feito em benefício dos mais necessitados, e esses tipos de comentários têm sempre a razão, não importa quão ilógico seja. Porém essas mesmas pessoas que concordaram, aquela que comentou e o próprio João não notaram a criança a seus pés, com um copo descartável na mão com algumas moedas trincando os dentes devido ao frio.

João já estava longe para notar algo que se passava ao seu redor. Lembrava-se da entrevista de alguns minutos antes; procurava erros de postura, falhas em sua autoapresentação. Havia sido demasiadamente longo? Ou fora a insegurança em sua voz? Talvez a sua aparência. É, poderia ter sido a última opção.

Encontrar emprego já foi mais fácil, pensava João a cada negativa nas entrevistas. Era a sua sexta nos últimos quinze dias. Não sabia o que poderia ser feito além do que já estava fazendo. Cortara pela metade a expectativa salarial apresentada no curriculum. Dependendo da necessidade, diminuía mais ainda quando sentia que havia a chance de ser chamado. Inútil. Chegara a pedir somente 40% da sua expectativa inicial. Sentia-se desesperado. Em inúmeras vezes, dissera à sua esposa:

- Honestamente, não sei mais o que fazer. Não sei.

Lembrava-se de sua mãe. “Menino, vai estudar pra ser alguém na vida!”. Por mais clichê que pudesse parecer a frase que ressonava em seus ouvidos, ele percebia como elas estavam certas. Preciso estudar, pensava João. Atualmente, contudo, havia necessidades mais urgentes em sua vida. Uma delas era fazer seu filho ser “alguém na vida”. “Antes de tudo, preciso fazê-lo sobreviver ao dia de hoje.” Para sua sorte, dos quinze pães que comprara ontem, ainda restavam sete. O leite acabara. Estavam a pão e água.

“Nem só de Pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”.

Lembrou-se da passagem. Argumentou sozinho, como se dialogasse com Deus.

- Cá entre nós, a sua Palavra não vai tapar o buraco do meu estômago hoje. “O homem não pode prescindir do Pão”.

Não lembrava quem exatamente havia dito aquela última frase, mas sabia que ela se encaixava perfeitamente naquele argumento. Era incrédulo, mas um dia já acreditara, por isso mantivera na mente algumas passagens. Sabia que havia um Deus, simplesmente preferia acreditar em suas próprias forças.

- Eu tentei confiar em Deus, mas quando meu filho passou quatro dias consecutivos se alimentando com quatro pães, pensei “Eu consigo fazer melhor do que isso” – dissera isso ao Padre Roberto, com quem conversava com certa freqüência. Era o eclesiástico responsável pela fé ainda existente no coração de João.

“Tenho vinte e três anos. Como é possível que alguém tão jovem como eu tenha tanta dificuldade em encontrar emprego?” Em sua lógica, seria razoável imaginar tal impossibilidade se a área em que buscasse trabalho fosse restrita, mas ele havia procurado em ramos diversos. Na sua mente, só conseguia lembrar-se do filho de 5 anos a esperar, com fome, obediente à ordem de sua mãe de esperar pelo pai para se alimentar.

Andava inquieto, como se a sua mente pudesse ser acalmada pelas suas passadas curtas e nervosas. Acelerando os passos, aumentou o ritmo da respiração e teve um acesso de tosse. “Pra completar, doente! Minha aparência já não é das melhores, ainda fico parecendo um moribundo!” Estava doente havia mais de um mês, porém o dinheiro que entrava era suficiente para alimentar sua prole ou comprar seus remédios. Os dois simultaneamente não era possível. Preferia a morte a ver seu filho sem se alimentar por um dia que fosse.

- Meu menino véio. Deve estar morrendo de fome e o pai ainda vai demorar a chegar. – falou sozinho, dando vida a seus pensamentos.

Sua mente foi ocupada pela imagem de Lívia. Quando perguntavam sobre sua esposa, respondia sempre da mesma forma:

- Ela é daquelas mulheres que não são vistas mais nos dias de hoje.

Era isso que verdadeiramente pensava dela. Contemplava em silêncio todo o sofrimento pelo qual João passava. Nunca cobrara ou se desesperara. Ouvia a angústia constante do marido, as lamúrias e as palavras ditas da boca para fora sem repreendê-lo ou aconselhá-lo. Ao final do monólogo, tomava-o em seus braços e acariciava seus cabelos até que ele dormisse. Não era difícil o sono vir, João estava cansado, calejado pelas andanças da vida.

Pai aos dezoito anos, não teve escolha senão trabalhar para manter aquilo que criara. Escolheu assim para que ninguém ousasse mencionar assassinar a criança.

- Sou tudo, menos covarde. Assumo que fiz e arco com as conseqüências – dizia João, sem tom orgulhoso em sua voz.

Apaixonado pela criança, chegava a trabalhar quinze dias consecutivos quando se aproximava o aniversário do filho, para que ele recebesse o presente que pedira. Quando não conseguia o presente pedido, o filho sorria com gratidão e obediência, como se percebesse todo o esforço do pai, mas este chorava como se a criança que não teve o desejo atendido fosse ele.

Estava desempregado há cinco meses. Numa entrevista chegou a chorar com a negativa da empresa. Não obstante, não fez pedido nenhum. Estava ciente de que o mundo não girava em torno da sua vida e de suas necessidades. “Pra completar, adoeci”, reclamava João com Lívia, após vinte dias de doença. A esposa sorria docemente e respondia:

- Tenha calma, João, que tudo se ajeita.

Após sair da última entrevista, pegou o celular para avisar a Lívia que mais uma vez não havia dado certo. Preferia dizer ao telefone a ter que encará-la face a face, com os olhos cheios de esperança contida, por medo da resposta conhecida, mas inegavelmente ansiosos por uma surpresa. Iria avisá-la para que ela, desde a entrada do marido em casa, acolhesse-o com o silêncio amoroso que sempre o esperava após as seleções. É meu único consolo, pensava João. Não se imaginava em posição de consolar a esposa.

Perdido em devaneios, acordou com seu ônibus que chegava antes do esperado.

- Deus não é de todo mal – pensou João, como se tentasse recompensar o que havia dito e pensado da mesma forma que fazemos com um amigo que tratamos mal sem querer e depois adulamos, em busca de perdão.

Subiu no ônibus, ansioso por retornar ao lar, pois apesar de tudo, ainda tinha uma esposa e um filho que, no momento, mais cuidavam dele do que o oposto. Percebeu que só havia uma cadeira vaga; sentia-se cansado, resolveu que aquela cadeira era sua e acelerou o passo. Chegou antes de todos os outros passageiros à cadeira e estava a ponto de sentar, mas notou que havia uma senhora de idade que subia. Esperou e quando ela chegou ao lado dele, João sorriu e disse:

- Pode se sentar, senhora.

Ela corou. João não entendeu o motivo de tal embaraço por algo tão banal como oferecer uma cadeira. A senhora aceitou com um “Obrigado” surdo. O rapaz sorriu gentilmente para ela, que abaixou os olhos envergonhada. Ele não sabia o que ela havia falado. Ela havia falado do que não sabia.

2 comentários:

André Palhano disse...

Meu amigo, que texto foi esse, hein? Estou em estado de choque. Foi um dos seus melhores, pode ter certeza!

Às vezes comentamos algo que, baseado em nossas crença, julgamos ser errado ou imoral. Mas a verdade é que nem sempre estamos corretos em proceder assim. Na verdade julgar já é bastante arriscado.

Bem, é isso!

;D

Vitória disse...

Eu sempre fico abobalhada quando alguém que eu não conheço comenta no meu blog e elogia.
=)
Muito obrigada!
Eu tô meio sem tempo, mas assim que eu puder eu corro pra cá e leio isso tudo aí e volto pra comentar!