Babel

Mais um dia começava com seu preguiçoso despertar. Abriu os olhos vagarosamente, como um bebê a contemplar o, inicialmente, belo mundo. Já não era mais belo aos olhos de Ricardo. Era somente o mundo. Mais precisamente: era-o em silêncio. Pelo menos, para ele, surdo desde seu primeiro dia de vida. Seu choro fora inaudível, era o que sempre imaginava, quando sua surdez era questionada.

Devido à deficiência, ou auxiliado por ela, Ricardo estava sempre absorto em seus pensamentos. Eles, por sua vez, eram registrados, em sua maioria, nos seus manuscritos, que nunca mostrara para ninguém. Por necessidade, era um ávido observador. Gostava de sentar-se à mesa de uma cafeteria próxima à sua casa, pedir um suco e somente observar. Chegou a passar a tarde e a noite inteiras contemplando os “escolhidos por Deus”, como chamava os de audição perfeita, conversarem, ou “diversarem”, como batizou em um de seus escritos.

Como é possível notar, não era dos mais religiosos. Indagado sobre isso uma vez, disse que “acreditava em Deus, mas não gostava dEle”. Não achava que sua deficiência teria sido algo justo da parte do Todo-Poderoso. “Como Ele me deu o livre arbítrio, dou-me a liberdade de não gostar”.

“Diversar” foi um verbo que ele mesmo criou, ao perceber a inacreditável capacidade do homem de conseguir falar horas e não conseguir chegar a um ponto comum. Conversar, acreditava ele, era semelhante a dialogar, que, como o próprio prefixo sugere, implica uma dualidade de pensamentos que convergem para o mesmo ponto, ao invés de duas pessoas falando sobre duas coisas diferentes ao mesmo tempo sem saber o que está ocorrendo do outro lado.

Assistia a esse comportamento todos os dias, na mesma cadeira, na mesma cafeteria e, em sua maioria, no mesmo horário. Ricardo se dirigiu mais uma vez à cafeteria. Pediu um suco ao, já amigo, garçom. Como de costume, escolheu o primeiro grupo que iria observar. Tirou o bloco de notas e uma caneta, pois sempre andava com elas em punho, fazia anotações do que era possível observar e deduzir e, ao lado das observações, colocava a sua imaginação e criação para aquela cena. Escolheu um casal de namorados que, supostamente, discutia.

Os dois se encontravam agitados. Ricardo olhou ao redor, a fim de inferir se o tom de voz utilizado tanto pelo homem quanto pela mulher era alto. As pessoas pareciam alheias à discussão. Imaginou que ainda havia um pouco de razão naquele casal. “Não irá durar muito”, pensou Ricardo. Essa suposição era baseada no gestual relativamente agitado e de perceber que a discussão já ultrapassara o limite do diálogo e encontrava-se na luta por impor o seu argumento. Nenhum dos dois conseguia finalizar um raciocínio, pois o outro, com gestos e, pelo movimento labial ele imaginara, elevando o tom de voz interrompia e determinava que era sua vez de falar. Ricardo acompanhava tudo aquilo de camarote, já que o casal pensava como todos pensamos hoje e imaginava estarem sozinhos na cafeteria. Mais uma vez, ele observou as pessoas que rodeavam os namorados. Dessa vez, já estavam mais alarmados para o que acontecia naquela mesa e olhavam com certa estranheza. “Sabia que não ia durar muito”, pensou e sorriu com sua profecia se concretizando.

Porém, seu sorriso não deixou de ser notado pelo namorado. Ao ver o semblante de Ricardo, a olhar para a mesa e sorrir, levantou e se dirigiu a ele, com um olhar enfurecido. Sua namorada rapidamente o seguiu.

- Tá rindo de que, imbecil? – leu Ricardo nos lábios do homem.
Respondeu balançando a cabeça negativamente e sorrindo de maneira simpática a ele.

- Fala!

Ricardo instintivamente se levantou para tentar acalmar o rapaz, mas não foi entendido dessa forma e foi empurrado sobre a mesa. Após isso, o homem partiu para cima dele, agrediu-o com socos na barriga, em sua face até derrubá-lo no chão. A partir daí, passou a chutá-lo, até que o garçom que atendia Ricardo todos os dias correu ao encontro do homem e pulou sobre ele. Quando o rapaz conseguiu ouvir o que se passava ao redor dele, escutou gritos que diziam:

- Ele é surdo e mudo, seu merda! Selvagem! Animal!

Somente conseguiu pensar como não havia escutado isso logo depois que o empurrou. Lembrou que não escutara nada até aquele momento. Imediatamente lhe veio uma pergunta:

- Desde quando estava surdo?

Sua namorada precipitou-se a auxiliar Ricardo. Seu nariz sangrava e sua roupa estava parcialmente rasgada. Levantou-o e começou a organizar sua mesa da melhor maneira que podia. Ricardo sinalizou algo que ela não conseguia compreender.
- O quê? Não consigo entender.
Um garçom a ajudou:
- Ele está procurando pelo bloco de notas.
- Ah, deixe-me procurar!

Vasculhou por alguns momentos até que encontrou. Abriu-o para colocar onde, imaginava ela, ele escrevera pela última vez. Encontrou a página. Percebeu que as observações eram sobre ela mesma e seu namorado e ficou estupefata que Ricardo compreendeu tudo aquilo que se passava com os dois sem sequer ouvir uma palavra. Porém, o que chamou sua atenção foi uma anotação feita na parte de baixo da folha, quase indecifrável:

“Se quiser ser compreendido, escute, pois seu silêncio me fala mais do que seu mais eloqüente discurso.”

3 comentários:

Thiago Mariz disse...

Título do texto se refere, além à passagem bíblica, ao filme homônimo, de 2007.

O slogan do filme é "Se quiser ser compreendido, escute", portanto, a ideia final (como já fui questionado) não foi somente minha.

Texto curto. Há margem para muita coisa, principalmente para o aprofundamento das personagens, que são descritas com leviandade. Peço que me perdoem aqueles mais exigentes, pois a exigência do trabalho me consome mais. Agradeço a quem lê x)

Guilg7 disse...

Nossa...mto lindo...Deus nos ouve e faz...

http://lg7fortalezace.blogspot.com/

vlw

Suzane Borba disse...

O silêncio oportuno é mais eloqüente do que o discurso.

hehehe

Adorei o texto, Tito! Você, como sempre, um ótimo escritor :)

Beijo, saudades!