Se há algum lugar em que é possível retirar histórias maravilhosas, esse lugar se chama Planeta Terra. Infinidade de pessoas, casos, problemas, virtudes e falhas, a terra contém mais mistérios do que nossa vã filosofia é capaz de supor. Tal qual Deus. Através de pedidos que nos parecem insanos, pois fogem ao padrão normal desse humilde planeta, transforma nossa vida. Ou dá sentido a ela...
Posso dizer a ti, amigo leitor, que sou um sonhador. Dentre os meus inúmeros sonhos, um deles é poder contar, um dia, aos meus netos “Vovô, certa vez, passou por uma situação...”. Talvez, ali, ao terminar a minha última história, poderei dizer: “Pronto, meu Deus, realizastes todos os sonhos da minha vida.”
Voltávamos
- Aquilo é uma pessoa? – questionou Luan.
- Rapaz, eu acredito... – nesse momento, a cabeça da pessoa levantou-se e ele nos fitou – é, é uma pessoa.
- Ei, pois bora acelerar o passo. Ele tá todo encolhido, não dá pra saber o que ele tem ali embaixo.
Começamos a acelerar. Enquanto passávamos pelo rapaz, olhei-o demoradamente e Deus colocou algo em meu coração. “Converse com ele”. Por um momento, hesitei. Era madrugada, eu já deveria estar em casa, minha mãe estava com medo, pois andava sozinho num local perigoso e o homem poderia estar armado. A última opção me pareceu improvável. Deus não me mandaria numa pessoa que pretendesse nos matar caso nos aproximasse. Mas ainda havia os outros argumentos. Decidi por ir, afinal sempre quis escutar a voz de Deus. De que adiantaria escutá-la e não obedecer?
- Ei, bora ali evangelizá-lo? – perguntei, meio tímido, talvez não aceitassem meu pedido.
- Agora? – questionou Luan.
- Vamos fazer o seguinte, a gente deixa Flávio em casa e volta pra conversar com ele.
- Não! Eu quero ir evangelizar também.
Pronto. Voltamo-nos para ele e começamos a andar em sua direção. O mundo, contudo, já fora bem mais cruel com aquele rapaz do que os corações dos cinco jovens que iam tentar conversar com ele. Luan foi o primeiro a ter coragem de dirigir-lhe a palavra, enquanto o homem tentava escapar.
- Moço, a gente não quer lhe machucar não.
Ele parou. Olhou-nos por alguns segundos. Essa hesitação nos deu coragem a continuar nossa peregrinação.
- A gente só quer falar do amor de Deus pra ti. – continuou Luan.
Mais alguns segundos de tensão de ambos os lados. Nós não sabíamos o que ele poderia ter em seu poder, pois suas mãos estavam dentro de sua camisa. Ele não sabia se realmente era essa a nossa intenção. Talvez a docilidade da voz de Luan o tenha convencido.
- Nós podemos?
- Tudo bem. Pode, sim.
Aproximamo-nos com menos medo, mas suas mãos ainda estavam para dentro da camisa. Não poderíamos desistir agora. Era aquele o momento. Ali, no início da conversa, lembrei-me dos meus contos em que alguém abordava um mendigo e conversavam longamente. Estava acontecendo o que já pensara por tanto tempo.
- Bem, nós só gostaríamos de fazer uma oração pelo senhor, é possível? – perguntou Luan.
Seu olhar era seco e frio. Como se estivéssemos o julgando, ou se aquilo que nós estivéssemos fazendo não fosse algo em que ele acreditasse. Nada mais seria o suficiente para nos afastar, a não ser que ele o requeresse enfaticamente.
Estendemos nossas mãos, como em qualquer outra oração que já fizemos. Fechamos nossos olhos, e Luan estava prestes a começar quando o rapaz interrompeu:
- Só uma coisa. Vocês são de que Igreja?
- Somos da Comunidade Católica Shalom.
- Ah, Shalom, é? – o tom de sua voz parecia de alguém que vivenciou algo e não gostou – Eu fazia parte do Shalom.
Infelizmente a palavra a ser usada é “óbvio“, mas não significa que está correto, porém: obviamente, duvidamos da palavra dele. Qual seria a possibilidade de aquilo ser verdade? De encontrarmos um mendigo, de madrugada, que já fez parte do Shalom? Facilito até: qual seria a possibilidade de encontrar um mendigo que já participou da Comunidade? Foi aí que ele começou a destruir nossos muros de preconceito e julgamento.
Por cinco minutos, ele falou pessoas que participam do Shalom até os dias de hoje, antigos responsáveis pela casa, etc. A cada confirmação dos mais velhos da comunidade, os mais jovens ficavam embasbacados. Esse ponto em comum entre nós e o rapaz, fê-lo abrir-se mais um pouco. Tirou lentamente os braços de dentro da camisa. Sua feição, contudo, ainda era de alguém insatisfeito por algum motivo. Resolvemos conversar um pouco antes da oração.
- Se a gente pode perguntar: como você se chama? – perguntei-lhe.
- Ângelo. Agora eu posso perguntar algo a vocês?
- Claro! – respondemos em uníssono, crendo ver uma abertura ao diálogo da parte do nosso amigo.
- Vocês sabem o que é solidão?
E essa pergunta rasgou-nos como uma faca fria da cabeça aos pés. Todos nós sabemos o que é solidão, mas quem sabe o que é a solidão das ruas? O que é a solidão de dormir no frio, de levantar a cabeça a cada pessoa que passa, pois ela pode ser o seu carrasco? O que é a solidão de se sentir triste mais do que o normal e chorar sozinho, com frio e com fome? Essa solidão não conhecíamos. Nosso silêncio respondeu. Afinal, o que poderíamos responder? “Sei”? Se respondêssemos “não”, nossos corações doeriam ainda mais. “Sinto muito” seria a resposta mais nojenta. Não sentimos muito, nós só sentiríamos muito se sentíssemos alguma coisa do que ele sente. E nós não sentimos muito, nós não sentimos nada. O silêncio era o que ele esperava.
- Eu digo o que é solidão: solidão é não ter perspectiva. Solidão é estar num ônibus em plena madrugada sem saber onde irei dormir. Solidão é chorar sozinho num ônibus ao perceber o ponto que sua vida chegou. Solidão é se acostumar tanto com ela que quando alguém tenta consolá-lo você logo reclama daquela presença, porque ela é a única coisa que tenho na minha vida.
- Mas Deus te ama, cara! – foi tudo que Diego conseguiu pronunciar.
Sua risada foi sarcástica, como se já tivesse ouvido aquela frase tantas vezes. E tantas vezes ela era pronunciada da boca para fora. Não ali. Mas para ele, sim. E, olhando fixamente em nossos olhos, disse:
- Eu não sei mais o que é amor. Não sei mais o que é amar e ser amado. Isso é a solidão.
Não conseguíamos dizer nada. As palavras continuavam doendo em nossos corações. Não pela rudez das palavras. Como transformar uma vivência tão selvagem em algo tragável? Ele simplesmente exprimia o que lhe acontecia ao longo dos dias. Não poderíamos chamá-lo de nada. Luan resolveu começar uma nova conversa:
- E por que o senhor saiu da Igreja?
- Bem... isso não vem ao caso. Problemas familiares. Foram vários fatores. Não vem ao caso agora – parecia algo dolorido para ele.
- Mas, me diz, o senhor freqüentou o Shalom há muito tempo?
- Ah, faz tempo demais. Ainda nem era no atual local. Participava de um grupo de oração. Era muito bom, mas depois eu acabei saindo, pois cantava na paróquia daqui. Sempre gostei, então resolvi me dedicar ao Ministério de Música.
- Sério, você cantava no ministério? Caramba!
O clima havia aliviado um pouco. Rememorar aqueles tempos parecia ter feito um bem a ele.
- Cantei por muito tempo. O Padre gostava muito de mim, porque sempre que ele pedia alguma música eu atendia. – por um momento ele parou, nos olhou e disse, como se fosse algo sério – não me levem a mal não, mas bora sentar? Porque eu tou muito cansado pra ficar em pé assim de graça.
Então nos sentamos. Ele parecia um pouco mais leve. Porém ainda emanava certa seriedade. Perguntei-lhe então:
- O senhor tá com fome?
- Rapaz, eu não tomei café, não almocei e nem jantei.
Apesar de ser uma frase pesada. Falou-a tão suavemente que demos um leve sorriso. Chamei por Flávio e ele me acompanhou na compra do sanduíche. Havia um estabelecimento do outro lado da rua. Compramos o sanduíche e, quando voltamos, parecia que estávamos indo conversar com outra pessoa. Ele estava sorridente. Brincava com os outros três amigos que lá ficaram. Brincou quando lhe entreguei o sanduíche.
A partir daí, parecíamos velhos amigos. Ríamos, falávamos de diversos assuntos, inclusive aos relacionados à Bíblia. Ele se mostrava uma pessoa com imenso conhecimento da Palavra e uma ótima memória, pois, segundo ele, fazia alguns anos que ele estava afastado. Mostrou-nos sua passagem preferida. Falamos sobre os significados dela. Ele devorava o sanduíche de maneira rápida, mas embolada, pois queria falar e comer ao mesmo tempo. Sua ânsia por se alimentar era tão grande por conversar. Parecia fazer algum tempo que não conversava. Parou de comer e disse:
- Vou guardar para amanhã. Meu café.
Todas essas palavras, que soariam tão doloridas, eram faladas com leveza e sorriso. Deus já estava fazendo. Voltamos a conversar. Ele começou a falar sobre sua época de cantor da Igreja.
- Era muito bom. O Padre me adorava, sabe? De vez em quando, eu ainda o vejo. Todo final de missa ele olhava pra mim após a comunhão e dava um sorriso pra mim. Eu já sabia o que ele queria. Algumas vezes eu nem tinha ensaiado aquela música. Sinalizava que não, mas ele pedia. Eu sempre obedecia. No final, ele vinha agradecer dizendo que tinha ficado muito bonito.
- E qual era essa música? – perguntou Felipe.
- Ah, é conhecida, dizia assim – começou então a cantá-la.
- “Singela, doce e pura...”
Sua voz era um pouco fanhosa, mas a forma como cantava, com uma docilidade inacreditável, encaixava-se perfeitamente à sua voz. Deus se fazia presente naquele momento. A princípio, cantamos com ele. Sorríamos como velhos amigos que não se encontram há tempos. Após alguns segundos, contudo, nossas mentes voltaram-se à realidade daquele mendigo. Como ele havia chegado àquele ponto? Como ele não acreditava mais que Deus o amava? Como nossa vida era tão boa e ainda podíamos ser tão mesquinhos? Pensamentos nossos sincronizados, pois começamos a chorar.
Ao final da primeira vez em que cantou essa música, todos nós chorávamos. Pensávamos ser nós os instrumentos dEle para a vida daquele homem, quando Deus, na verdade, nos fazia mais uma vez entender e experimentar o que era amor. Lágrimas rolavam. Em uns eram singelas, de silenciosa contemplação da imensidão do Ser Superior que cuida de nós. Noutros, as lágrimas transformaram-se em rios quando ele recomeçou a música. Luan não se continha. Seu choro era alto e desesperado. Era como se Deus estivesse mostrando sua face naquele homem e Luan contemplava como um filho amoroso. Resolveu sair dali, seu choro era alto demais para continuarmos escutando a voz doce de Ângelo. Atravessou a rua, ajoelhou-se, apoiou-se na calçada e continuou chorando. Era ali, no silêncio da noite, da madrugada conhecida por ser do anti-amor, por um homem que foi “aquilo”, ou “algo”, que tínhamos nossa experiência mais profunda com Deus. E Luan se rendia a ela.
Enquanto ele continuava chorando, Ângelo terminava a música, ante nossos olhares cheios de brilho, como se víssemos a Deus próprio. Olhávamos ternamente para ele e, da mesma forma que Deus estava à nossa frente, estava à frente dele. Nossas lágrimas eram mais tranqüilas. Ele nos olhou e disse:
- Vou dizer uma coisa a vocês: se eu morresse hoje, morreria feliz.
E ali, Deus dizia “Pronto. Eis o que esperava de vocês, meus filhos.” E, ali, Flávio também caiu em pranto compulsivo. Juntou-se a Luan para consolar e ser consolado. Eu, Diego e Felipe continuávamos olhando o nosso anjo.
- Vamos lá, que eu quero falar com Luan – disse Ângelo.
Atravessamos a rua e Luan continuava a chorar. Parecia que Deus falava com Ele desde então. Não conseguia se conter. Ângelo aproximou-se, tocou-lhe no ombro e o abraçou. Era como ver o abraço entre pai e filho. O abraço foi o ápice do que Luan poderia pedir de Deus. Seu choro aumentou ainda mais.
- Muito obrigado, meu amigo. Muito obrigado. Você não imagina o que suas lágrimas significam para mim. Não imagina. Muito obrigado.
Mantiveram-se em silêncio mais alguns instantes e Ângelo voltou a falar.
- Eu te amo.
E ali, Ângelo voltava a saber o que era amor.
- Deus te ama, cara, Deus te ama. – foi tudo que Luan conseguiu balbuciar ante os soluços.
Silêncio entre os dois. O abraço contemplativo.
- Eu sei.
Eis a confirmação do que Deus fazia na vida dele. Eis o motivo do pedido tão ousado para mim. Eis o motivo.
Levantamos e voltamos ao nosso lugar. Permanecemos, ainda, conversando por alguns minutos. Conversamos como velhos amigos, sobre piadas, brincadeiras, nossos grupos de oração, pessoas que ele conhecia e nós também. Assim permanecemos quase vinte minutos, até que pedimos:
- Cara, podemos orar por você agora?
- Pode, sim, claro.
Ficamos de pé e estendemos nossas mãos sobre ele. Concretizávamos com aquele momento tudo que Deus fez na vida daquele homem. Oração curta, pacífica. Ao término dela, Luan tirou sua camisa e disse:
- Pegue, pra você se cobrir.
- Valeu, mas e você?
- Não, eu tenho uma aqui – logo disse Diego.
- Ah, tudo bem então.
Olhamo-nos demoradamente, como a não querer voltar ao mundo real, como a esperar que aquele momento nos levasse a outra dimensão, dimensão divina em que aquilo que acabava de acontecer fosse comum. Mas continuávamos lá e o mundo nos chamava de volta. Ainda tínhamos uma vida pela frente.
- Cara, temos que ir! Deus o abençoe, ok? Fica com Deus! – falou Felipe.
- Ah – resolvi pedi-lo algo – posso te pedir uma coisa?
- Pode, sim.
- Vá à missa nesse fim de semana, ok?
Por um segundo ele hesitou. Olhou-nos, pensou e respondeu:
- Ok, vou sim.
- Beleza, cara! Fica com Deus!
- Vocês também! Vou procurar algum lugar para dormir.
Despedimo-nos e caminhamos lentamente em direções opostas. Opostas como nossas vidas e caminhos eram até aquele dia. E, de tão paradoxais que eram, acabaram por se juntar e nos fazer sentirmos a presença de Deus naquela hora. Hora tão avançada, com pessoas já tão cansadas, buscando uma cama confortável e um cobertor quente. Hora essa que passou mais rápido com uma pessoa que não lembrava mais o que era isso.
Andamos por alguns instantes e, ao virarmos, Ângelo já tinha sumido. Estávamos oficialmente de volta ao mundo real. Não mais os mesmos de antes.
6 comentários:
A história que acaba de ler, amigo, é real. Alguns detalhes foram alterados, pois algumas coisas já me fogem à memória. Os nomes foram alterados para ter um quê de literatura maior. O narrador, obviamente, sou eu.
***
Quem quiser ouvir a música, ela se chama "mãe do novo homem" e pode ser encontrada em www.4shared.com.
essa história eu conheço :) muito bonita, por sinal.
Tbm já conhecia... mas parecia que estava conhecendo agora...
Orgulho de ser amigo desses caras!! rsrs
Deus abençoe!
poxa... agora que eu sei que foi real é que se tornou mais incrível!!!
muito bonito, amigo! ;)
Não conhecia e ela mexeu mtu comigo!
a humanidade xora esperando por nós e pelo amor de Deus e qnto Ele eh maravilhoso...
Deus t abnçoe cara!
Finalmente consegui comentar (ou ao menos logar, ahuiahiauhuaihaui, nunca achei que fosse ter dificuldades com isso ._.) *tira o suor da cabeça e... ahm... limpa na camisa :x*.
Eu tô com medo de falar alguma besteira aqui, haha :B *enxaqueca*.
Enfim...
eu acho que esse será um dos poucos posts (ui, vou me achar agora XD) que terei pouco pra dizer por não... saber o que dizer o_o' *non-sense*.
Acho que demoraria muito pra eu chegar nesse nível de coragem e de bondade que você e seus amigos possuem - é admirável. Sou muito medrosa - os tempos de hoje causam uma impressão forte e traumatizante... e tal ._. - e certamente não teria coragem de me aproximar assim de alguém desconhecido, principalmente em altas horas da noite. Até já tentei mudar, mas minha covardia vai além :~ mesmo que eu consiga ter o mesmo sentimento e desejo de querer ajudar. Sempre tem um bloqueio que me impede de fazer isso. Não só isso, mas principalmente - já que desde criança sofro quando vejo pessoas precisando de ajuda e não o faço por não conseguir ultrapassar um limite; sempre manti a esperança no meu crescimento, me tornar uma pessoa capaz e possuidora de meios que me fizessem alguém diferente. Mais ou menos isso. Cada um ajuda como pode e ao seu modo, então... (ain, eu sempre tenho mania de deixar frases incompletas e achar que as pessoas vão entender a mensagem implícita que eu não consigo descrever -_-).
Li esse post junto com Ênia, hoho, e no silêncio do escritório, eu só ouvi o "caramba!" que ela exclamou quando lia. E faço dela a minha palavra, hauihaiuahuia (não exatamente delicada, mãããs...).
Boa noite ^^/
P.S.: eu sei que sou meio viciada em Rosa de Saron, hehe, mas não teve como... parecia que eu tava ouvindo "Anjos das Ruas" e "As Dores do Silêncio" enquanto lia seu post :)
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