O menor ato

Não me lembro de tudo. Há tantas coisas mentirosas nesse mundo. Já diria algum sábio pessimista que os nossos sonhos e amores juvenis são apenas sentimentos rentáveis ao capitalismo. Cruel, mas real. Com o caminhar de nossos anos, percebemos que nem tudo, ou quase nada, que nos disseram é verdade. Nossa entrega total não nos faz bem. Não nos lembraremos do nosso amor por toda a vida. Não há vilões querendo destruir nossos relacionamentos. Quer dizer, há; nós. A vida não se resume a esse sentimento gostoso de sentir. O mundo não é só eu e você. Nunca será.

Contudo, a maior lição que recebi com o avançar da minha idade foi: não há nada maior do que o menor ato. Acostumamo-nos a ver pedidos de casamento megalomaníacos, atos de amor estapafúrdios, pessoas se jogando de prédios e caindo de paraquedas apenas para dizer "Will you marry me?". Pessoas cheias de loucura e vazias de maturidade. Atos gigantescos que não resolvem problemas do dia-a-dia. Problemas esses que surgem ao menor ato. Insensibilidade às verdades da vida. A desatenção, o desamor, a incompreensão. Caímos na armadilha do simplismo. Resolver problemas complexos com loucuras efêmeras e ineficazes. Findar brigas com lágrimas mentirosas. E vê-las surgir novamente em dias. O menor ato é o essencial.

Filósofos de botequim adoram paradoxos numa mesma sentença. Dá um ar de complexidade inintelígivel aos seus pensamentos. Aposso-me de suas ideias para dizer que o amor é simples, mas complexo. Não quero ser paradoxal. O amor está na simplicidade, mas o que essa palavra implica é complexo. Eis a minha explicação. Amor não é sentimento. É ação, ato, decisão. Nosso cérebro processa imagens relacionadas ao amor: provavelmente loucuras. Flores, doces, gritos em público. Não nos vem a mente o sussurro quase sonâmbulo de quando ela dormia em seu colo e ele apenas observava. Ela percebeu o quanto ele era paciente. E o presenteou com a doce palavra. Ele não precisava responder, estava agindo. Isso nos foge da mente.

- Sabe quando você sente suas forças indo embora? Você tem problema em casa?

Balançaste a cabeça negativamente.

- É, eu sei. Que bom que você não tem. Tem horas que eu sinto minhas forças indo embora, sabe? Você luta, luta e parece que não sai do canto. É um inimigo impossível de ser vencido. Eu não sei nem o que estou falando. Ele nem existe, na verdade. Acho que deve ser por isso que é impossível. Cansa, caramba! Cansa demais! Você está exausto, seu dinheiro não dá nem pra pagar as contas da casa e ainda faltam 4 bocas para alimentar. Seu pai está longe e você já é grandinho demais para pedir dinheiro. Tanto você como suas irmãs. E não dá para reclamar, porque quem quis sustentar a família fui eu mesmo. Claro! Iria deixar minha mãe e minhas irmãs passando fome? Não dá. O cara todo dia esquece a própria vida para que elas vivam. Eu não sou tão altruísta assim! Eu quero viver. É tão difícil assim? Não aguento mais! Eu tenho uma mulher que amo e não posso ter a minha vida com ela. Eu não sei nem onde está minha vida! Como vou poder dividi-la com alguém? Eu quero minha vida de volta. Eu quero minha vida de volta!

Tu permanecias em silêncio. Depois de anos, não me contive e desabei em lágrimas. Tanta coisa acontecera em nossos 3 anos de namoro e eu nunca havia chorado em tua frente. Não consegui segurar. Lágrimas intensas, de cansaço, de quem quer fugir do mundo. Queria somente não ser ninguém naquele momento. Queria que ninguém soubesse quem eu era. Pela primeira vez em 3 anos, coloquei-me sem proteções diante de ti. Mostrei-me frágil e indefeso. Encostei minha cabeça em teu ombro e chorei. Como nunca. Teu silêncio me amava.

Era-me impossível parar de chorar. Eu precisava daquilo. Então, docemente tu levaste minha cabeça ao teu colo e deitaste tua cabeça em meu rosto. Sentia meu rosto molhado, banhado em lágrimas. Percebi, contudo, que teu rosto estava molhado, não só pelas minhas, mas tu também choravas. Em silêncio. Como estavas até então. Compartilhavas da minha dor. Como ninguém nunca fizera até aquele presente momento. Tuas lágrimas me aliviaram, como se a minha dor, dividida contigo, fosse um pouco menos difícil de suportar. Com o tempo, meu choro cessou. Assim como o teu, mas permanecemos em sintonia psicológica e física naquela posição.

Pensei em dizer "eu te amo". Com o peso de tantas lágrimas derramadas. Não achei necessário; já havíamos dito isso. Tu, principalmente, havia dito isso. Então, depois de tanto tempo, você pronunciou as primeiras palavras.

- Está na hora de dar uma chance para o que te peço desde sempre, não?
- O quê?
- Deus.

Silenciei um momento. Era-me difícil imaginar ser dependente de alguém. Até ali era somente eu e minhas capacidades. Nunca havia falhado, mas agora eu estava fraco. Como muitos, respondi "sim" a Deus quando era ou isso, ou o fim.

- Tudo bem.

E foi a partir dali que jamais duvidei que tu me amavas. Amou-me tanto que chorou minha dor. Amou-me tanto que me ouviu em silêncio, mesmo sabendo o quanto eu precisaria de alguma palavra. Amou-me tanto que me ouviu dizer "não" por três anos Àquele que tu mais amavas. Amou-me tanto que não se importou que eu amasse mais a Ele do que a você.

Foi naquele dia que eu consegui, pela primeira vez, falar com Deus.

- Se Tu existes, então, é por Tua causa que ela está ao meu lado. Por isso, obrigado.

Ele existe. E colocou um anjo em minha vida.

3 comentários:

Guilherme Melo disse...

Saudade desses teus textos que nos fazem pensar...

Lindo texto cara. Ao seu melhor estilo. É exatamente o que preciso hoje em minha vida: lembrar da simplicidade das coisas...

Deus te abençoe, sempre.

Sh!

André Palhano disse...

"pessoas se jogando de prédios e caindo de paraquedas apenas para dizer 'Will you marry me'?"

desenterrou o clip de Bon Jovi, hein?

não tenho nem o que acrescentar ao seu texto. apenas dizer que concordo com tudo o que você disse. fez-me lembrar aquela frase de Mario Quintana:

"Se tu me amas,
ama-me baixinho.

Não o grites de cima dos telhados,
deixa em paz os passarinhos. [...]"

:)

Amanda Conrado. disse...

Como sempre seus textos são os melhores, meu Deus quanto dom!
Que coisa mais linda, que amor mais belo esse descrito! Concordo com cada palavra :)
Lindo mesmo!

Deus te abençõe muito!