O menino que não se lembrava

Narro-vos uma história comum, caríssimos. Não há mortes, suspense, metáforas. Não há amor, romance, alegria. Não espereis grandes reviravoltas, ou incríveis diálogos. Por quê? Porque ele era um homem comum. Não era belo, nem era feio. Não era alto, nem era baixo. Não era gordo, nem era magro. Era comum em tudo. Exceto numa coisa: ele não lembrava as maldades que faziam com ele. Maldades soa forte, concordam? Digamos aquilo que as pessoas fazem e nos machucam. Uns poderiam chamar maldade, outros "natureza humana". Ele não dizia nada. Por quê? Desconhecia tudo isso. Seu nome? Emanoel.

A primeira pergunta que me fazem é: como ele descobriu? Não foi tão difícil. Sempre foi calado, resguardado, introspectivo. Quando homem formado, chamamos a essas características virtude. Quando criança, fonte de brincadeiras de outrem. Brincadeiras inocentes, afinal estamos falando de crianças. Umas, inocentemente inocentes. Outras, inocentemente maldosas. Por seguidas vezes, a mãe de Emanoel fora chamado ao Colégio. Haviam o amarrado ao poste, pintado seu rosto, melado sua roupa. Algo, contudo, intrigava sua mãe: a cada nova visita sua à Escola e a cada nova pergunta de "Quem foi que fez isso?" a resposta de Emanoel era sempre a mesma.

- Quem fez isso o que, mãe?
- Meu filho, você está com o rosto inteiramente sujo!

Ou:

- Meu filho, você está com as marcas da corda no seu braço!

Ou ainda:

- Meu filho, sua roupa está completamente melada!

Apesar das sentenças serem diferentes para a mãe, Emanoel sempre dava a mesma resposta. A princípio, ele olhava com estranheza, sem entender como aquilo acontecera. Depois, olhava para sua mãe e dizia:

- Desculpe, mãe. Não sei como isso aconteceu.

Em casa, ela se desesperava, pois achava que o menino tinha medo de dizer-lhe quem o machucara. Chorava, gritava com Emanoel, mas tudo que ele conseguia dizer era "Desculpe". E a angústia de sua mãe somente crescia.

Resolveu, então, levá-lo a um psicólogo. O tratamento durou meses. Tentou de tudo para arrancar a resposta do menino. Hipnose, conversas, drogas. Nada surtiu efeito. No final do tratamento, o psicólogo chegou a uma conclusão:

- Leve-o a um neurologista. Isso não é psicológico. Ele deve ter alguma deficiência.

A mãe de Emanoel obedeceu. E o psicólogo estava certo. O médico disse que nunca tinha visto aquilo, mas seu filho realmente não se lembrava das memórias negativas. Ele não as reprimia, porque se isso acontecesse, com a hipnose ele teria se lembrado. Pediu para estudar a mente de seu filho e foi autorizado. O menino iria viver normalmente, mas periodicamente iria visitar esse médico para que ele pudesse tentar alguma cura para isso. E então, "o menino que não se lembrava", como foi apelidado na escola ainda novo, pôde ir para sua casa sabendo que iria viver normalmente, até onde o normal lhe era permitido.

E o menino virou rapaz. De rapaz virou homem. As maldades contra ele cresceram na medida em que as maldades crescem no coração do homem. Tinha amigos, mas suas amizades não eram duradouras. Na maioria das vezes, porque as pessoas descobriam que a falta de memória poderia ser favorável a elas. E então tiravam proveito. Das formas mais inacreditáveis possíveis. Um dia, contudo, aquilo cansava. Emanoel não sabia de nada, mas sentia. O médico trabalhava para descobrir isso ainda, porém era complexo. Aquela complexidade o fascinava. E buscava estudá-lo cada vez mais.

Voltemos ao "mas sentia". Obviamente, quando a maldade era física, ele sentia a dor. O que intrigava a todos é que ele sentia as dores das palavras, dos olhares, dos gestos. Como não sabia o motivo daquilo, estranhava. Mas em muitas ocasiões, acordou gritando com uma dor aguda no peito. Chorava sem entender por que. Em sonhos, falava baixinho "tá doendo, pára, por favor" e acordava banhado em suor. Não sabia quem tinha feito o que com ele, somente sabia que tinham feito algo, pois sentia dor. Nunca deixou, entretanto, de amar seus amigos, pois desde cedo ele decidira não julgá-los. Percebeu que seria impossível descobrir quem o machucara. Restava-lhe a opção de não amar ninguém porque alguém lhe ferira ou a opção de amar a todos, mesmo sabendo que alguém o traíra. Escolheu a segunda. Essa escolha feita por Emanoel afastava inúmeros amigos. O leitor desavisado releu as duas últimas frases para ter certeza de que ele escolhera amar a todos. "Como isso poderia afastar alguém?" Respondo-vos com um exemplo.

Emanoel teve também um melhor amigo. Ele se chamava Rodrigo. Amigo desde infância, Rodrigo era o único que não o maltratava. Para Emanoel isso não significava nada, pois não sabia quem fazia maldades com ele. Mas essa condição especial chamou a atenção do seu futuro amigo. E eles se aproximaram. Viraram amigos. Com o amadurecimento de ambos, Rodrigo passou a ter especial admiração pelo amor incondicional de Emanoel por todos. Quando, em inúmeras ocasiões, queria tomar as dores do seu amigo e agredir fisicamente. Emanoel sempre dizia:

- Calma. Eu não me lembro de nada.

Tentava argumentar, mas nada mudava essa frase. Um dia, então, disse:

- Eu nunca vou te trair! Nunca, sabia, cara? Porque eu te amo como um verdadeiro irmão.
- Obrigado, Rodrigo. Eu também te amo, mas saiba que se você me trair, eu ainda vou te amar.
- Mas eu nunca vou te trair!
- Tudo bem, só queria que soubesse disso.

Rodrigo amadurecera, mas não o suficiente para saber que o que sai da boca do homem é impensado. Somente falamos a verdade quando a verdade está em nós; quando dizemos algo porque estamos vivendo as renúncias, dores e consequências daquilo que pronunciamos. Não o condeno. Quem aqui um dia foi capaz de perceber isso? O leitor atento já percebeu o ato seguinte desse drama. E acertou.

Emanoel já teve namoradas. Inúmeras; pois seu jeito cativava. Seu amor incondicional encantava. Depois de algum tempo de namoro, as namoradas percebiam que sua falta de memória era conveniente também. Por isso, namorou várias. Mais de cinco, talvez. Uma delas ele se deixou levar e amou desesperadamente. Luiza. Namorou mais de três anos. Ela o amava quase como ele. Amar como Emanoel era impossível, caso eu ainda não tenha sido claro. Mas ela foi a que mais se aproximou. Era louca por ele, por seu jeito, por sua sabedoria, sua quietude, sua beleza (que existe nos olhos de quem vê, não naquele que é). Após algum tempo, contudo, Luiza se sentia constrangida com seu amor. Eles nunca brigavam, somente quando Emanoel fazia algo errado. Ela reconhecia o erro em inúmeras ocasiões, mas ele nunca falava nada, somente:

- Esquece, meu bem. Eu te amo. Não basta?

Bastava. Sobrava, em verdade. Luiza passou a não se sentir merecedora daquilo. Chorava com Emanoel sem ele entender o motivo. Pedia a Deus que o fizesse terminar o namoro, porque ele merecia alguém melhor. Resolveu conversar com Rodrigo. Sabia que poderia aprender bastante com ele, já que Rodrigo deveria ter muita experiência nisso. Obviamente, ele tinha. E os dois se aproximaram, buscando um meio de amar Emanoel da melhor forma possível. Não viram a armadilha que preparam para si mesmos. Aproximaram-se tanto que se aproximaram demasiadamente. Em busca de amar o próximo, amaram um ao outro. Lindo seria, não fosse traição. Não conseguiram. Deixaram acontecer. Não "deixaram". Quão cruel seria eu ao dizer que ocorreu por vontade deles? Fazemos milhares de escolhas ao dia sem perceber. Quase todas inconscientemente. Porém, aconteceu. Ao perceber isso, choraram. Luiza fugiu. Emanoel nunca soube, pois nunca lembrou. Rodrigo, lembrava. E permaneceu.

Resolveu então contar. Buscou palavras, imaginou fórmulas de machucar menos, meios para chegar a um fim. Após dias de angústia, sentou-se com seu amigo e falou. Tudo. Da maneira mais dolorosa, portanto mais sincera, possível. O inesperado para Rodrigo, mas esperado por todos nós que estamos fora dessa situação (portanto, conseguimos raciocinar tranquilamente) e conhecemos o caso de Emanoel, aconteceu. Ele não lembrava nada. Quando Rodrigo terminou de contar tudo, Emanoel teve um pequeno desmaio, como sempre acontecia, levantou-se, sorriu e abraçou seu amigo, dizendo:

- Cara, quanto tempo! Já estava ficando com saudade! Por onde tu andavas?
- Eu te traí, Emanoel.

Como isso não era, necessariamente, uma memória ruim, Emanoel pôde falar normalmente.

- Tudo bem, Rodrigo. Me dá um abraço, pode ser? Tava com saudade de você.

Rodrigo abraçou-o novamente. E chorou. Chorou, porque percebia que era amado mesmo traindo. Chorou, porque percebeu que suas palavras não significavam nada, pois além de trair seu amigo, traiu suas convicções. Chorou, porque percebeu o fim daquela amizade. Não seria capaz de suportar ser amado por Emanoel. Não conseguiria olhar nos olhos daquele que mais o amou em sua vida e lembrar que, um dia, o traiu. Escolheu sumir. Emanoel nunca soube, porque nunca lembrou. Mas doeu. Foi a maior dor que sentiu na sua vida. Por meses seguidos, acordava com uma dor extremamente forte no seu peito, mais precisamente em seu coração. Sonhava dizendo "Não. Por favor, pára!". Os gritos tornaram-se mais comuns, o choro aparentemente sem motivo também. E foi nessa fase que seu médico o chamou para conversar. Somente ele e o médico, sem a sua mãe.

- Emanoel, eu te chamei aqui para te dar uma ótima notícia!
- É, doutor? Qual é?
- Eu consegui desenvolver uma técnica para te dar a memória negativa de volta. Fiz alguns testes e foram bem-sucedidos. Por isso, fui autorizado a fazê-la em humanos.
- O senhor deve ter ficado bem feliz. Tantos anos procurando. Mas eu não quero.
- Como assim, você não quer?
- Eu não quero ter uma memória negativa, doutor. Não quero saber o que de ruim o outro fez para mim.
- Emanoel, desculpe-me ser tão direto, mas as pessoas lhe maltratam e você não sabe. Muitos te traem, alguns caçoam de você e tu não queres tua memória?
- Prefiro assim. Prefiro amá-las mesmo com o que elas me fazem.
- E a tua felicidade?
- Eu sou feliz, oras!
- Com tanto sofrimento?
- E ser feliz é não sofrer?

Aquela pergunta paralisou o médico. Não saberia responder. Mesmo sendo quase trinta anos mais velho que o nosso herói, o neurologista, como um rapaz de 17 anos, ávido por sabedoria e experiência de vida, perguntou:

- E o que é ser feliz, Emanoel?
- Para você? Não sei. A felicidade está em você e ela é diferente para cada um de nós. Somente garanto-lhe uma coisa: quando tu procurares em tua mente o motivo da tua felicidade, depois de muita busca, em algum lugar dessa procura tu vais encontrar uma palavra-chave, que não é o clichê que tu vês todos os dias, é algo muito maior.
- Que palavra-chave?
- Amor.
- E como isso não é clichê?
- Não estou falando de amor apaixonado, como estamos cansados, pelo menos eu estou, de ver em todos os locais desse planeta. Estou falando de amor verdadeiro. Como decisão, como sentimento, como loucura. Esse amor. A sua felicidade é bem diferente da minha, mas isso com certeza temos em comum. Amor.
- Então essa é tua decisão?
- Sim. Obrigado por sua boa vontade comigo.

Emanoel levantou-se e saiu para o começo do resto de sua vida. Não mudaria mais. Ali estava sua decisão. O médico olhou-o inquieto, como se aquela verdade mexesse com tudo que ele um dia aprendera sobre o mundo, somente balbuciava, como se a repetição daquilo lhe fosse trazer respostas:

- Amor...

4 comentários:

Guilherme Melo disse...

Muito muito bom!

Me fez bem ler esse teu texto logo de manhã... hehe

Abraço irmão, fica com Deus!

Vanessa disse...

É como Guilherme disse: me fez ler esse teu texto logo de manhã!
hsdfiuoashodiuhaoi, eu já tô um bicho preguiça hoje.

Talvez essa não tenha sido a idéia que você quis transmitir - ou talvez tenha sido justamente isso, mas eu não consegui parar de pensar que Emanoel era Deus. Amar incondicionalmente, com todos os defeitos e maus atos (?), etc, etc.
E o mais estranho é que eu não vi sacanagem nenhuma aí - tipo, as pessoas se aproveitavam dele e tal... acho que não cheguei a acreditar que as pessoas realmente fariam isso, mesmo sabendo que são capazes. Essa é a famosa esperança :~
Ter a consciência de que algo é fato, mas ainda esperar, em algum ponto do seu "coração", que não seja um fato õ.õ
Viagens à parte :x
É isso aí xD

André Palhano disse...

ele certamente nunca deixou de amar!

ótima história!

Amanda Conrado. disse...

"- E ser feliz é não sofrer?"
Frase fortíssima! E como a verdade ao bater em meus ouvidos fez doer o coração; fez doer talvez por que eu já soubesse e não quisesse acreditar. Tenho sofrido, por sido sou feliz! :D
Também não pude deixar de associar a figura de Emanoel a Deus, é belo o amor incondicional que o personagem tem para com as pessoas, e como não lembrar daquele que é somente Amor?
Enfim, história fantástica!