Deus é uma criança

- Não é possível que nada que tu faças saia certo! É inacreditável! – sua voz era áspera e rude, a forma como jogava as palavras doía em seu coração, pois eram ditas de forma pausada, como se fossem milimetricamente pensadas para causar o maior dano possível.

- Meu amor, me perdoe, eu não havia percebido na hora.

- Claro, você nunca percebe “na hora”. É sempre burro demais para entender. E depois ainda me culpa com seu ciúme imbecil. Isso é doentio, sabia, Carlos? Não é amor mais não, é doença.

Os olhos de Carlos se enchiam de lágrimas. Jamais esperava que uma atitude infantil sua, e ele havia reconhecido a infantilidade, se tornasse algo tão grande. Ele a amava. Era um pouco inseguro, sabia disso, mas não era doente... Ou era?

- Desculpe-me... – foi tudo que conseguiu dizer, antes de começar a se dirigir para o quarto, quando sua esposa o interrompeu dizendo:

- Para onde você vai? Hoje é o seu dia de colocar a Flávia para dormir.

Por um instante pensou em retrucar, pedir um favor, mas percebeu que aquele não seria o momento mais adequado para isso. Simplesmente abaixou a cabeça e voltou-se para o quarto da filha de 4 anos de idade. Enquanto andava, falava baixinho:



- Você é uma anta mesmo, um idiota, um burro. Como não poderia perceber que ela estava resolvendo algo profissional? Seu amor é doentio mesmo, falta-lhe o coração puro. Não sabe o que é amar.

Parou de falar antes de entrar no quarto da filha. Abriu delicadamente a porta e a encontrou sentada na cama, como se estivesse à sua espera.

- Vamos deitar, filha. Papai precisa dormir.

- E nós não vamos falar com Papai do Céu?



Carlos ficou constrangido. Algo que ele ensinava à sua filha todos os dias esquecera naquele momento. Por sorte, sua filha ainda era uma criança. Não o julgaria, nem mesmo perceberia sua falha.

- Tudo bem. Mas hoje você reza, porque o papai está muito cansado.

- Não, papai. A última vez já fui eu, hoje é a sua vez.

- Eu sei, filha, mas o papai está muito cansado.

- Mas, papai, a gente sempre rezou assim.

- Pelo amor de Deus, começa a rezar... – percebendo que aumentara o tom de sua voz e que sua filha mudara sua feição e parecia assustada, parou.



Pensou na forma como a havia tratado e como ela não merecia aquilo. Se havia alguém que não merecia era sua filha. Só pôde imaginar “Além de brigar com minha esposa, só faltava terminar a noite brigado com Flavinha.” Resolveu pedir desculpas, tentando encontrar o perdão.

- Desculpa, filha, é que o papai está muito cansado e...

Flávia não esperou que ele terminasse a frase e o abraçou, dizendo:

- Tudo bem, papai.

Seu sorriso era tão grande quanto antes, como se nada tivesse acontecido. Como se seu pai não tivesse errado.

- Vamos rezar, filha. Mas eu queria que você rezasse, porque o papai está mesmo muito cansado. Eu prometo que compenso e rezo depois.

- Mas, papai, eu não sei o que falar, porque hoje não é minha vez.

- É só pedir que Papai do Céu diga a você o que falar. Tudo bem? Você consegue fazer isso?

- Acho que sim.

- Pronto, fecha seus olhos e pede baixinho que Ele diga o que você tem que falar, tá certo?

- Tá.



Angelicalmente, Flávia fechou seus olhos e baixinho, quase inaudível, falou:

- Papai do Céu, eu não sei rezar. Como papai sempre diz pra eu falar isso, digo agora: me ensina a rezar.



Um instante de silêncio se passou e então Flávia começou a orar:

- Papai do Céu, faz meu coração tão puro quanto o do meu pai. Que eu possa amar da maneira mais inocente que existe, como ele ama a mamãe. Peço também que me faça tão inteligente quanto ele, porque eu vejo sempre quando ele explica coisas muito difíceis pros seus amigos. Quero ser como ele quando crescer. Quero amar do jeito que ele ama a mamãe. Quero amar um filho do jeito que ele ama a mim. Quero ser tão inocente como ele é hoje. Quero amar a ti, Papai do Céu, do jeito que ele Te ama. Quero fazer o que for preciso para Te amar e para amar minha família como ele sempre fez. Papai do Céu, faz meu coração tão puro quanto o do papai. Quero dizer “eu te amo” com a sinceridade com que ele diz. Quero me entregar ao Teu amor do jeito que ele se entrega. Quero ser uma criança aos Teus olhos do jeito que ele é ainda hoje. Quero ser amado por Ti do jeito que ele é. Papai do céu, faz meu coração tão puro quanto o do papai. Papai do céu, diz que me ama do jeito que o Senhor diz agora para Ele.



Quando terminou de falar, Flávia permaneceu em silêncio por mais algum tempo. Pôde ouvir o soluço do seu pai, pôde sentir sua cabeça recostada nas suas pernas, como se a criança fosse ele e a mãe fosse ela.

Carlos chorava copiosa e sinceramente, como somente a lágrima da criança é capaz de ser sincera. Por alguns segundos ainda, Flávia permaneceu em silêncio, como se soubesse que seu pai precisava daquelas lágrimas. Então, como se houvesse terminado sua conversa com Deus, perguntou:

- Papai, por que o senhor tá chorando?

- Por causa da sua oração, meu amor.

- Eu falei errado, papai? Me desculpa, eu sabia que não era pra eu falar!

- Não, não, não, meu amor! Você falou certo. Foi Papai do Céu que mandou você falar isso?

- Foi, sim, papai. Eu falei tudo que Ele me disse. Eu falei certo?

- Falou, sim, meu bem. Certo até demais.

- Que bom, porque Ele me disse umas coisas que não entendi. Tinham umas palavras difíceis, papai.



Carlos sorriu em meio às lágrimas. Era um sorriso sincero, como somente quem foi amado é capaz de sorrir. Levantou-se então e abraçou sua filha. Por algum tempo permaneceram abraçados e, mais uma vez, Carlos foi amado por Deus. Naquele abraço percebeu por que tinha que ser como criança para estar com Deus. Algumas lágrimas rolaram ainda. Entendeu então por que amava aquela criança mais do que a ele mesmo. Abraçava naquele momento Deus. Sua filha continuava abraçada a ele, como se soubesse o motivo do abraço tão demorado. Esperou o tempo que seu pai quis. Até que ele a soltou, olhou-a nos olhos e disse:

- Eu te amo, viu, filha?

- Eu também te amo, papai.



Deu um beijo em sua testa, um beijo amoroso e se despediu:

- Vai dormir agora, meu bem. Boa noite. Fica com Deus.

- O senhor não vai ler nenhuma historinha pra mim hoje?

- Hoje não. Papai tá muito cansado. Você me perdoa?

- Sim, papai.



“É claro que sim”. Apagou a luz do quarto dela, fechou a porta delicadamente e sentou no chão do corredor. Voltou a chorar. Sentiu-se amado duplamente. Como se Deus se tivesse feito presente em sua filha, como se fossem um só para amá-lo quando ele mais precisava. E orava baixinho:

- Meu Deus, Meu Deus, como é que Tu me amas tanto? Como és tão perfeito mesmo ante tantas imperfeições minhas? Eu Te amo, Pai. Eu Te amo. Mas como nunca falhas comigo? Como, meu Deus. Como?



Soluçava. E era tudo que conseguia dizer. Depois de alguns minutos e choro abundante, só conseguia dizer “Eu Te amo” e “Como é possível?”. Passaram-se dez minutos ainda, para que ele pudesse se levantar e ir para o quarto, onde sua esposa ainda o esperava acordado.



- Ela deu mais trabalho hoje?



Carlos sorriu como se confirmasse aquilo que a esposa dizia. Seu sorriso, contudo, era de alegria contida, em que pensava como na verdade aquela frase deveria ser o contrário. Trocou de roupa e se deitou, em meio ao silêncio da esposa. Ela então começou:



- Desculpa pela forma como falei contigo hoje. Não estavas completamente certo, mas não deveria ter faltado com o respeito como faltei. Me desculpa.



Carlos, mais uma vez, sorriu e respondeu:



- Tudo bem, não se preocupe.



Pensou como poderia perdoá-la tão fácil, pois sabia o quanto demorava a perdoar normalmente. Não conseguia guardar rancor de sua esposa. Foi então que se lembrou do “coração puro e inocente, como uma criança”. Uma lágrima ainda correu silenciosa por seu rosto, antes que ele pudesse dizer à sua esposa:



- Boa noite.