Minha perda

07 de janeiro de 2005

Olá. Caro diário... Meu nome é... Como é possível você (quem?) perceber, não sei de que maneira começar. Estou escrevendo à caneta, o que me impossibilita de apagar aquilo que não gosto. Riscar a forma errada pela qual comecei seria quase uma metáfora da minha vida, a qual tento mudar, na realidade, preciso mudar, a partir de agora. Portanto, esses “cumprimentos” iniciais permanecerão da original forma em que se encontram. Deixe-me tentar mais uma vez.

Meu nome é Maurício Vidal Alves, tenho 34 anos, sou engenheiro civil e casado. Era casado; encontro-me viúvo há 18 horas e 23 minutos. Minha esposa chamava-se Fernanda Esperança Oliveira. Ironicamente, não acreditava que minha vida pudesse valer à pena até o dia 06 de junho de 1996. Ali minha existência tomava um novo rumo. A partir de agora, ela ganhará mais um. Só não sei ao certo qual.

O meu intuito de estar escrevendo um diário é muito simples. Preciso desabafar com alguém. Obviamente, sabes que não és alguém, propriamente dito. Mas, começando agora, você, diário, ganhou uma vida: a minha. Só tinha uma pessoa com quem pudesse contar. Essa pessoa era Esperança. Assim a chamava, porque foi isso que ela representou para mim. É isso que ela representa.

Nós, sobreviventes ao selvagem mundo capitalista, costumamos ver nos filmes de breve e superficial reflexão pessoas que, ao se aproximarem da morte, vêem sua vida passando num breve instante. Hoje, às 02:22 eu vi a minha. Estás se perguntando o óbvio. Não, eu não sou Brás Cubas. E não, dizer que vi minha vida passar quando soube da morte de Fernanda não é uma figura de linguagem.

Encontrava-me recostado na cadeira do melhor hospital da cidade. A televisão, ironicamente, estava ligada num filme de comédia. Digamos que seja um método, nada eficaz, da equipe hospitalar mantê-lo mais relaxado. Para mim, de forma abstrata, era a humanidade rindo do meu sofrimento. Minhas pernas doíam após ter passado 14 horas em pé esperando por uma notícia sobre a cirurgia da minha esperança. Recebi evasivas novidades sobre o andamento de seu estado. Resolvi sentar-me para tomar café extra-forte, pois o sono estava me consumindo. Coloquei-o à minha frente, na mesa em que meus pés descansavam. Não sabia nem o que pensar. Imaginava-me notificando à família dela de sua morte, pois tinha certeza que não conseguiriam chegar do interior a tempo de encontrarem o médico para uma notícia definitiva. Nem eu tive a oportunidade de raciocinar direito sobre todas as possibilidades, já que o Dr. Eduardo se dirigiu a mim pouquíssimo tempo depois de eu ter recostado os pés à minha frente.

Quando vi seu jaleco branco e seus negros cabelos de um médico jovem, mas experiente, senti minha respiração parar, meu coração falhar, minha mão tremer. Ele se dirigiu a mim de forma lenta e serena. Enquanto se aproximava, levantei-me de forma ligeira e nervosa.

- Sente-se, por favor, senhor Maurício.

Naquela hora, a única coisa que eu consegui pensar é que os médicos devem ter uma matéria na faculdade explicando apenas como lidar em situações como aquelas, pois ele estava tranqüilo como dois velhos amigos se encontrando num bar.

- Como ela está? Esperança irá ficar bem? Eu posso vê-la?

Esse é um momento em que ninguém nesse mundo consegue prever uma palavra que sairá da boca de quem te dará a notícia.

- Senhor, o acidente que ocorreu causou danos irreparáveis ao cérebro. Tudo que poderia ser feito foi, mas a senhora Alves não conseguiu sobreviver aos ferimentos. Eu sinto muito, senhor.

E foi ali. Naquele exato momento, senti minha vida passar diante de meus olhos. Momento efêmero de uma vida efêmera. Uma breve vida de oito anos, sete meses e um dia. Nada passa pela sua cabeça antes disso. A única coisa que você sente é a maior força do mundo esmagando seu peito contra a parede. Essa força não tem um nome, mas deveria ser chamada de o contra-amor. Minhas mãos começaram a tremer compulsivamente e meu coração batia acelerado, como se estivesse numa situação de perigo; como se eu ainda pudesse salvá-la. Meus olhos não piscavam, pois estava assistindo ao meu filme. Vi seu sorriso. Seus lindos negros olhos. E uma única frase ecoava em minha cabeça durante essa apresentação: “Você não foi feito para mim, mas eu fui feita para te amar”. Enquanto nosso casamento passava, essa frase era repetida milhares de vezes. O filme parou de passar e somente a frase continuou a ressonar. Mais uma vez instantaneamente, um clarão surgiu diante de mim e se aproximou. Meus olhos se fecharam como uma reação a essa luz. E foi aí que entendi: era verdade. Mais uma vez senti o contra-amor me sufocando. A dor era insuportável, as lágrimas caíam sem parar, pois não teria mais um ombro para relaxar minha cabeça. Não teria mais um sorriso a receber quando começasse a falar de cálculos incompreensíveis sobre obras inacabadas. Não teria mais uma voz para me dar um longo sermão quando brigasse com minha família e nem para dizer “Eu te amo” quando a luz do abajur se apagasse e eu fechasse meus olhos. Não sentiria mais o doce beijo de sua boca após acabar uma discussão com ela sobre idéias opostas de cada um de nós dizendo “Você não foi feita para mim, mas eu fui feito para te amar”. Mas, principalmente, não teria mais alguém me esperando para me dar um abraço todos os dias às 19:00. Consegui respirar novamente e, automaticamente, abri meus olhos. A televisão ainda gargalhava, as emergências ainda continuavam no hospital, e o médico ainda estava ao meu lado. Porém, a primeira coisa em que prestei atenção foi no copo de café, onde li: “Atendimento ao cliente”. Mais uma vez, soou imensamente irônico. Dr. Eduardo olhou-me nos olhos e disse:

- Uma assistente social virá para lhe informar de todos os detalhes.

Entendi porque os médicos têm fama de serem frios. Mas, eles não podem chorar a dor de todos os seus pacientes. E se ele a chorasse, seria real? Prefiro a frieza real ao seu sorriso moldado.

Por fim, vi-me rodeado de uma imensa metrópole. Encontrei-me andando por ela e ninguém me parou para dizer “Sinto muito”. Não houve três dias de luto oficial, nem comoção geral da sociedade. As pessoas ainda tinham coragem de rir ao meu lado. Conversavam como se nada me houvesse acontecido. O presidente falou à televisão e não citou a morte da Esperança. O padre fez a oração e não pediu a Deus que cuidasse dela. Em algum momento, contudo, creio que ele falou aos meus ouvidos quando orou dizendo: “Senhor, enxuga o rosto desse homem, pois não há lágrima mais pura a cair no mundo. E uma pureza desse tamanho sabemos que só pode advir do sentimento que o Senhor mesmo sente: o amor”. Mesmo depois de ele ter dito isso, não consegui me levantar. Todos continuavam da maneira como começaram o dia. Não era justo. Alguém deveria compartilhar da minha tristeza, do meu luto.

Então, foi a ti que recorri, amigo Diário. As páginas de que disponho são imensas, mas minha dor não caberia nelas, pois são infinitas. Peço, contudo, que a guarde com muito carinho, da maneira que eu puder colocá-la aqui, pois se a ponho aqui, é porque em meu coração não cabe tudo. Não em vida; e a minha Esperança lutou durante oito anos para que eu vivesse, não agora vou desapontá-la.

Viúvo há 20 horas e 35 minutos.

6 comentários:

Thiago Mariz disse...

A idéia é continuar essa história. Depende da minha empolgação com o desenrolar dela. Não era pra ser tão piegas assim =/

Suzane Borba disse...

Não tá piegas, Tito. É uma história dramática e muito bonita. Só tem uma coisinha que eu não gostei, o tal "selvagem mundo capitalista"... ehuehuehe
Mas eu adorei! ;D
E deixe de história de piegas.

Beijo ;*

André Palhano disse...

boy... gostei muito! mas só tem uma coisa... esperança é a última que morre. não?

kkkkkkkkkkkkkk...
onda!

sério, ficou massa!

saudades de você, amigo!

Thiago Mariz disse...

o texto mais lindo que já pude ler...
não só pelo fato de vc escrever bem,mas porque parece que vc passou pela situação!
parece MUIIIITO.
bom,eu nunca passei por isso...
mas acho que vc conseguiu chegar o mais prox da realidade.
por isso que te amo,meu grande escritor :)
:*

Thiago Mariz disse...

por:JullyanaLucena(L)³

Anônimo disse...

Hello. This post is likeable, and your blog is very interesting, congratulations :-). I will add in my blogroll =). If possible gives a last there on my blog, it is about the Celular, I hope you enjoy. The address is http://telefone-celular-brasil.blogspot.com. A hug.